No dia 8 de agosto passado, foi publicada a Lei Complementar nº 160/2017, editada com a finalidade de minimizar os efeitos negativos da concorrência fiscal estadual, mas sem descuidar da segurança jurídica e expectativa legítima despertada nos contribuintes. Assim, permitiu a convalidação de incentivos fiscais concedidos no passado sem a aprovação do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) e a remissão dos créditos tributários decorrentes, bem como apresentou novas regras para inibir a prática, inclusive com sanções financeiras decorrentes da Lei de Responsabilidade Fiscal aplicadas ao Estado que conceder ou mantiver os incentivos fiscais em desacordo com a LC nº 24/75.
Esse tema não é novo. Mas dada a iniciativa da legislação citada, a questão merece voltar a debate, sobretudo diante da atual situação fiscal de desequilíbrio e de déficits que a União e a grande maioria dos Estados-membros vivencia.
Apenas para citar o caso da União, recentemente foi amplamente divulgado o montante estimado da desoneração fiscal federal (“gastos tributários”), girando em torno de 285 bilhões de reais para o corrente ano de 2017. São consideradas desonerações tributárias todas e quaisquer situações que promovam presunções creditícias, isenções, anistias, reduções de alíquotas, deduções, abatimentos e diferimentos de obrigações de natureza tributária. Tais desonerações, em sentido amplo, são justificadas pelos governos por supostamente servir a diversos fins: simplificar e/ou diminuir os custos da administração; promover a equidade; corrigir desvios; compensar gastos realizados pelos contribuintes com serviços não atendidos pelo governo; compensar ações complementares às funções típicas de Estado desenvolvidas por entidades civis; promover a equalização das rendas entre regiões; e/ou, g) incentivar determinado setor da economia.
Segundo os dados fornecidos pela Secretaria da Receita Federal (Relatório “Demonstrativo de Gastos Tributários PLOA 2017”), esses benefícios fiscais estão assim distribuídos: a) Agricultura – R$ 26,58 bilhões (9,33% do total): Desoneração Cesta Básica: R$ 17,58 bilhões; Exportação da Produção Rural: R$ 6,26 bilhões; Seguro rural: R$ 218 milhões; Zona Franca de Manaus: R$ 1,24 bilhão; b) Assistência Social – R$ 12,73 bilhões (4,47% do total): Aposentadoria de Declarante com 65 Anos ou Mais: R$ 6,44 bilhões; Automóveis – Pessoas Portadoras de Deficiência: R$ 367 milhões; Cadeira de Rodas e Aparelhos Assistivos: R$ 244 milhões; Dona de Casa: R$ 240 milhões; Entidades sem Fins Lucrativos – Associação Civil: R$ 2,7 bilhões; Entidades sem Fins Lucrativos – Filantrópica: R$ 1,39 bilhão; c) Ciência e Tecnologia – R$ 10,1 bilhões (3,55% do total): Despesas com Pesquisas Científicas e Tecnológicas: R$ 1,48 bilhão; Informática e Automação: R$ 5,76 bilhões; Inovação Tecnológica: R$ 2,05 bilhões; d) Comércio e Serviços – R$ 82,78 bilhões (29% do total): Simples Nacional: R$ 64,09 bilhões; Zona Franca de Manaus: R$ 17,19 bilhões; e) Cultura – R$ 1,83 bilhão (0,64% do total): Atividade Audiovisual: R$ 282 milhões; Entidades sem Fins Lucrativos – Cultural: R$ 163 milhões; Programa Nacional de Apoio à Cultura: R$ 1,35 bilhão; RECINE: R$ 10,7 milhões; f) Desporto e Lazer – R$ 706 milhões (0,25% do total): Entidades sem Fins Lucrativos – Recreativa: R$ 258 milhões; Incentivo ao Desporto: R$ 235 milhões; Olimpíadas: R$ 212 milhões; g) Direitos da Cidadania – R$ 753 milhões (0,26% do total): Fundos da Criança e do Adolescente: R$ 346 milhões; Fundos do Idoso: R$ 87 milhões; Horário Eleitoral Gratuito: R$ 319 milhões; h) Educação – R$ 14,17 bilhões (4,98% do total):Creches e Pré-Escolas: R$ 21 milhões; Despesas com Educação: R$ 4,29 bilhões; Entidades Filantrópicas: R$ 4,54 bilhões; Entidades sem Fins Lucrativos – Educação: R$ 3,61 bilhões; PROUNI: R$ 1,32 bilhão; Transporte Escolar: R$ 6 milhões; i) Energia – R$ 4,14 bilhões (1,46% do total):Biodiesel: R$ 65 milhões; Gás Natural Liquefeito: R$ 666 milhões; Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura: R$ 2,41 bilhões; Termoeletricidade: R$ 740 milhões; j) Habitação – R$ 11,25 bilhões (3,95% do total): Financiamentos Habitacionais: R$ 2,19 bilhões; Minha Casa, Minha Vida: R$ 582 milhões; Poupança: R$ 8,43 bilhões; k) Indústria – R$ 35,13 bilhões (12,34% do total):Inovar-Auto (indústria automobilística): R$ 1,21 bilhão; Petroquímica: R$ 1,09 bilhão; Setor Automotivo: R$ 2,49 bilhões; Simples Nacional: R$ 18,9 bilhões; SUDAM: R$ 1,84 bilhão; SUDENE: R$ 2,71 bilhões; Zona Franca de Manaus: R$ 6,42 bilhões; l) Saúde – R$ 36,01 bilhões (12,64% do total):Assistência Médica, Odontológica e Farmacêutica a Empregados: R$ 5,08 bilhões; Despesas Médicas: R$ 12,69 bilhões; Entidades Filantrópicas: R$ 6,82 bilhões; Entidades sem Fins Lucrativos – Assistência Social e Saúde: R$ 3,79 bilhões; Medicamentos: R$ 5,31 bilhões; Produtos Químicos e Farmacêuticos: R$ 2,13 bilhões; m) Trabalho – R$ 43,17 bilhões (15,16% do total): Aposentadoria por Moléstia Grave ou Acidente: R$ 10,75 bilhões; Benefícios Previdenciários e FAPI: R$ 4,45 bilhões; Desoneração da Folha de Salários: R$ 17,03 bilhões; Indenizações por Rescisão de Contrato de Trabalho: R$ 5,99 bilhões; MEI – Microempreendedor Individual: R$ 1,55 bilhão; Incentivo à Formalização do Emprego Doméstico: R$ 685 milhões; n) Transporte – R$ 4,99 bilhões (1,75% do total): Embarcações e Aeronaves: R$ 1,46 bilhão; Leasing de Aeronaves: R$ 787 milhões; Motocicletas: R$ 107 milhões; TAXI: R$ 219 milhões; Transporte Coletivo: R$ 1,66 bilhão.
A pergunta que devemos realizar é: será que todos esses benefícios fiscais cumprem adequadamente o seu papel e oferecem à sociedade brasileira o retorno pretendido? Ou seria melhor o próprio Estado aplicá-los diretamente e destinar tais recursos ao objetivo final?
A situação se torna ainda mais delicada quando estamos diante de renúncias fiscais concedidas por Estados-membros e que acabam gerando uma indesejável guerra fiscal ao tentarem atrair para o seu território empresas e empreendimentos através de desonerações tributárias e créditos financeiros, fenômeno conhecido como “guerra fiscal”.
Cabe registrar que a prática estadual se materializou a partir da efetiva descentralização da federação e da autonomia concedida aos entes pela Constituição de 1988, uma vez que, no período anterior, do regime militar de 1964, prevalecia o modelo centralizador nas mãos do Governo central, pouco remanescendo em termos de arrecadação e de investimentos para Estados e Municípios.
Apesar do ganho político gerado na propaganda positiva em favor do administrador público que “ganha” o duelo fiscal, com argumentos que vão desde aumento de empregos, desenvolvimento local, incremento da arrecadação futura e desconcentração industrial, as críticas à guerra fiscal são inúmeras e de diversas ordens e natureza.
Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que, apesar de um ente se beneficiar no curto prazo com o redirecionamento do empreendimento ao seu território em detrimento do outro, o que por si só já não é algo efetivamente eficiente, a partir de uma visão global, a federação como um todo é que perde, não apenas pela desarmonia federativa, mas também pela privação dos recursos financeiros renunciados. Ademais, há o perigo da banalização da prática, com a multiplicação indevida do fenômeno e a perda da eficácia do estímulo, com a inexorável redução global de arrecadação.
Além disso, não há comprovação quantitativa de que os resultados dos investimentos alocados após o redirecionamento do empreendimento sejam superiores ao valor das renúncias concedidas, deixando dúvidas se a aplicação direta dos recursos abdicados geraria maior benefício para aquela sociedade em vez da concessão dos estímulos. E a eficácia econômica desta conta restará ainda mais duvidosa se levarmos em consideração que o maior desenvolvimento daquela localidade gerará, naturalmente, um aumento populacional e maior demanda por serviços públicos, especialmente os de saúde, segurança, transporte e saneamento, acarretando, por decorrência, um maior gasto da máquina estatal.
Outrossim, em um país com uma desigualdade regional evidente, o mecanismo potencializa ainda mais o desequilíbrio fiscal na federação, uma vez que os entes federativos desenvolvidos são os mais capazes de oferecer melhores benefícios e suportar por mais tempo as renúncias fiscais, atraindo para si maior número de investimentos e prejudicando ainda mais os entes menos desenvolvidos.
Há, ainda, a questão da insegurança jurídica para o contribuinte decorrente da concessão de benefícios fiscais concedidos de forma unilateral por Estados e que acabam sendo desconsiderados por outras unidades da federação, gerando dúvidas sobre a validade dos benefícios aproveitados, com os reflexos tributários (estorno de crédito e cobrança da diferença não recolhida).
Ainda, sob a ótica empresarial, além da questão concorrencial decorrente da desvantagem competitiva imposta às empresas não agraciadas pelos benefícios fiscais, há que se questionar a eficiência alocativa dos fatores de produção, uma vez que o empreendimento se estabelecerá em localidade escolhida por força dos benefícios fiscais e não pelas suas características próprias, desconsiderando-se, muitas vezes, fatores como o distanciamento do seu mercado consumidor e de fornecedores, custos de transporte e logística, a deficiência de qualificação da mão de obra e de infraestrutura etc.
Voltando à questão da LC 160/2017, devemos lembrar que, nos termos do artigo 155, §2º, inciso XII, alínea “g” da Constituição Federal de 1988, é a Lei Complementar nº 24/1975 que dispõe sobre os convênios para a concessão e revogação de isenções do ICMS celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, no âmbito do CONFAZ.
Porém, não obstante a obrigatoriedade da realização de convênios para a concessão destes benefícios fiscais, diversos Estados já os concederam unilateralmente (muitos julgados inconstitucionais), revelando a face negativa da guerra fiscal na esfera estadual, não apenas sob a ótica da indevida renúncia de receitas tributárias, mas também pela insegurança jurídica gerada aos contribuintes que aproveitaram o benefício fiscal concedido (por exemplo, a dúvida sobre a validade do crédito de ICMS tomado pelo destinatário das mercadorias).
A propósito, em recente concessão de liminar na ADI 5.467, o relator Ministro Luiz Fux, ao suspender a eficácia de normas do Estado do Maranhão que concedem crédito presumido do ICMS para empresas participantes de programa de incentivo ao desenvolvimento econômico, afirmou que “a instituição unilateral de benefício fiscal estimula a guerra fiscal e representa risco ao equilíbrio do pacto federativo”.
A LC 160/2017 traz em seu bojo mecanismo – via convênio em que a unanimidade de votos não é exigida (arts. 1º e 2º) – de legalização de incentivos fiscais concedidos por Estados de maneira unilateral (sem anuência do CONFAZ), além do perdão das infrações fiscais decorrentes de autuações em face de contribuintes que aproveitaram os benefícios e créditos tributários concedidos indevidamente. Interessante é ver que a norma, com a finalidade de coibir a prática pelos Estados de concessões unilaterais de benefícios fiscais, adota sanções financeiras decorrentes da Lei de Responsabilidade Fiscal para os que o fizerem, a saber: a) não poderão receber transferências voluntárias, b) não poderão obter garantia de outro ente; c) não poderão realizar operações de crédito (art. 6º).
No fim do dia, o que se pode concluir disso tudo é que, além de insegurança jurídica, dentro de um modelo federativo que deveria ser cooperativo e não competitivo, a guerra fiscal parece trazer mais efeitos negativos do que positivos. Ou, ao menos, contabilizando-se o seu custo-benefício, ainda não se conseguiu demonstrar cabalmente um saldo positivo para o cidadão e para a sociedade brasileira.
Marcus Abraham – Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Doutor em Direito Público (UERJ), Professor de Direito Financeiro e Tributário da UERJ, autor de diversos livros, dentre eles o CURSO DE DIREITO FINANCEIRO BRASILEIRO, 4ª edição, Editora Forense, 2017 e LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL COMENTADA, 2ª edição, Editora Forense, 2017; CURSO DE DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO, 1ª edição, Editora Forense, 2017.
Por Site do Jota
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